glória gloria3 gloria4 Demo image Demo image Demo image Demo image Demo image

De engraxate a doutor

  • 28 de jan. de 2011
  • Danilo José Soares Marques
  • Marcadores: , , ,
  • Matéria publicada na revista contigo em 29/09/2009 a respeito do gloriense Gil Lúcio Almeida conta como ele saiu de engraxate a doutor. Confira.




    O professor universitário Gil Lúcio Almeida conta como driblou as dificuldades de sua origem humilde para se tornar um homem de sucesso
    De engraxate a doutor


    1o de dezembro de 1988. Ames, estado de Iowa, Estados Unidos. Um rapaz de 28 anos, carregado de malas pesadas, locomove-se com dificuldade escorregando na neve. Precisa chegar à residência universitária rapidamente, senão vai congelar. Está com roupas leves, inapropriadas para o inverno rigoroso. De um carro parado, uma mulher o chama. Ele não compreende o que ela diz. Acha que é uma oferta de carona. 
    Feliz da vida com a súbita possibilidade de fugir do frio, ele abre a porta de trás, joga as malas lá dentro e senta-se ao lado da motorista. A mulher continua falando, em inglês, tentando explicar algo, incompreensível para um brasileiro que acaba de desembarcar nos Estados Unidos e não compreende nada da língua local. Mas, depois de muita mímica, o estrangeiro entende o recado. Ela precisa de ''um empurrãozinho'' para sair com o carro, atolado na camada fina de gelo. 

    O empurrão é dado, o carro escapa do gelo e a motorista, agradecida, lhe dá carona até a Universidade Estadual de Iowa. Quando ele entra em seu quarto e põe as malas no chão, olha pela janela e vê o campus coberto pela neve. Se Neil Armstrong disse a frase ''um pequeno passo para o homem, mas um passo gigantesco para a humanidade'' quando pisou na Lua, o estudante de pós-graduação Gil Lúcio Almeida poderia dizer com orgulho sobre aquele desembarque: ''um passo pequeno para um homem, mas um passo gigantesco para o Gil Lúcio.'' 

    Mineiro de São João Batista da Glória, quinto filho de uma família de seis irmãos, Gil chegava na universidade norte-americana para fazer o seu tão sonhado PhD em fisioterapia. Ia virar doutor. Era uma grande realização para alguém que nasceu em uma área rural, passou por dificuldades de toda ordem e que, aos 8 anos, cursava o primário pela manhã e trabalhava como engraxate à tarde para ajudar a família. 

    ''Sapato incolor é o mais difícil. Se não tomar cuidado...'' 
    Hoje, aos 49 anos, de terno e gravata, aboletado em sua sala decorada com sofás de couro, na região da Avenida Paulista, em São Paulo, o presidente eleito do Conselho de Fisioterapia Ocupacional do Estado de São Paulo ensina a arte de engraxar sapatos: ''Sapato incolor é o mais difícil. Se não tomar cuidado, mancha o couro. Isso é pior que sujar a meia do cliente com graxa. Dá um trabalho danado.'' 

    Gil Lúcio começou a trabalhar cedo. Seu pai, o lavrador João Galdino Sobrinho, criava a molecada na base do cabresto curto. Não deixava os filhos ficarem na rua jogando bola. Além de rigoroso, era cético. ''Meu pai não acreditava que o homem tinha chegado na Lua, mas em disco-voador ele acreditava.'' O motivo era simples: João Galdino havia presenciado um voo rasante de um desses objetos voadores não-identificados, lá no interior mineiro. ''Eu era criança e estava dormindo na traseira de um caminhãozinho. Meu pai parou o veículo e desceu para fazer uma entrega. De repente, ele me sacodiu e perguntou se eu tinha visto aquilo. Ele estava apavorado. Disse que era um disco-voador, bem grande e iluminado. O objeto havia passado por cima da cabeça dele. Eu só acreditei porque foi meu pai quem disse. Ele não era homem de falar mentira.'' 

    Alvo de um ataque fulminante de abelhas africanas 
    Além de escapar da abdução, Gil Lúcio precisou superar muitas barreiras até desembarcar na Universidade de Iowa. Antes de completar 8 anos, ele e a família viveram em uma chácara em São João Batista da Glória. Tinha riacho, brejo e bichos. ''Um domingo, a gente vinha voltando da missa quando vimos que nossa propriedade havia sido atacada. A maior parte dos animais estava morta.'' O local fora alvo de um ataque fulminante de abelhas africanas. 

    O pai ficou desgostoso e trocou a área por dois sítios. A família investiu tudo em plantação. A seca matou as sementes e os sonhos ali investidos. João Galdino arrumou emprego em Itaú de Minas. Decidiu largar a vida no campo. ''Quando íamos embora, caiu uma chuva fortíssima. Tivemos de enfrentar enchente. Quase morremos na travessia de um rio. Era uma ironia terrível para quem tinha perdido tudo por causa da seca. Endividados, a gente sentia no peito uma dor forte. Era a dor do fracasso.'' 

    Gil Lúcio iria descobrir logo que Itaú de Minas não era um dos locais mais aprazíveis para se viver. A cidade estava soterrada por camadas de cimento, proveniente de uma fábrica. O pó cobria casas, calçadas, ruas, plantas e pessoas. Sem dinheiro, com a mãe precisando dividir um ovo entre os filhos, ele andava pela cidade pensando numa forma de ganhar dinheiro. 

    Na porta da fábrica, Gil Lúcio reparou em um detalhe: ''Apesar de toda aquela poeira, percebi que os trabalhadores gostavam de manter os sapatos sempre limpos e brilhantes.'' Depois de um périplo pelo comércio local, ele conseguira os instrumentos necessários para se iniciar na profissão de engraxate: uma caixa de madeira com a saliência para o cliente apoiar o pé, três escovas de dente que um dentista lhe deu, flanelas para o lustro e uma lata de graxa preta. ''Para meu azar, meu primeiro cliente usava sapatos marrons.'' 

    Gil Lúcio estudava na Escola Machado de Assis pela manhã. Chegava na porta da fábrica por volta de 15h e só voltava para casa à noitinha, depois de ter ganho o equivalente a 20 reais. ''A minha mãe sonhava com uma assadeira de vidro transparente. Em casa, nossos utensílios eram todos de ferro, que enferrujava. Lembro que com o primeiro dinheiro que consegui, comprei uma forma para ela. Era uma espécie de passaporte para a modernidade.'' 

    Sempre pensando na educação dos filhos, João Galdino decidiu tirar a família de Itaú de Minas e levá-la para um grande centro onde houvesse ensino superior. Em 1974, Gil Lúcio, seus pais e os cinco irmãos desembarcaram em São Carlos, interior de São Paulo. Ele tinha 14 anos e ia concluir o antigo ginásio. Em seguida, prestou exame para técnico de mecânica. 

    Foi servente de pedreiro, garçom, vendedor de sapatos 
    Nessa época, ele não trabalhava mais como engraxate. Passou por uma série de empregos. Foi servente de pedreiro, garçom, vendedor de sapatos. Sua atuação mais folclórica foi com o negócio de ''frango-cabide''. ''Eu andava com frangos vivos pendurados na ponta de um pau, e cabides na outra ponta. Seguia pela cidade, gritando: 'Frango, cabide! Frango, cabide! Quem vai querer!''' 

    E chegou a hora de fazer o cursinho pré-vestibular para brigar por uma vaga na universidade. Gil Lúcio montou uma ''bancada especial'' em sua casa: ''Arrumei uns blocos de cimento bem resistentes e pus uma tampa de madeira. Espalhei as apostilas por cima e comecei a estudar que nem um maluco.'' 

    Ele queria entrar em medicina. Não conseguiu. Passou em biologia, mas trancou a matrícula. No semestre seguinte, tentou novamente e entrou em fisioterapia. ''Queria cursar fisioterapia para ganhar dinheiro, mas, no meio do curso, me apaixonei pela ciência do movimento.'' 

    Formou-se em 1984. Partiu em seguida para o mestrado. Era uma época de militância estudantil e protestos contra o regime militar. Gil Lúcio era representante comercial e vendia jeans, calçados e chinelos. A pós-graduação iria terminar em 1988. Os colegas sugeriam que ele fizesse o doutorado fora do Brasil. De preferência, nos Estados Unidos. 

    O professor começou a escrever cartas , em um inglês capenga, e a enviar a universidades norte-americanas. ''Professores amigos revisavam o que eu escrevia.'' Um dia, a porta se abriu. ''Recebi uma resposta positiva do professor Jacques Lempers, da Universidade de Yowa.'' O único problema: para ganhar bolsa de estudos, Gil Lúcio precisaria atingir 550 pontos no temível Toefl - o teste de proficiência em língua inglesa. 

    Raspou a poupança e viajou para os Estados Unidos 
    Ele conta que vendeu carro, eletrodomésticos, raspou a poupança e viajou para os Estados Unidos. Foi reprovado na primeira tentativa. ''Fiz 420 pontos.'' Com a ajuda de uma bolsa do Rotary Club, conseguiu ficar mais dois meses por lá. ''Estudei que nem um doido.'' Na segunda tentativa, fez 547 pontos. Não eram os 550 exigidos, mas a universidade achou que ele estava apto e permitiu que se matriculasse no curso de doutorado. 

    Em 1993, Gil Lúcio defendeu uma tese sobre movimento em crianças portadoras de síndrome de Down. Obtinha, assim, o seu título de doutor, o PhD, fechando uma trajetória iniciada na longínqua São João Batista da Glória. Nos anos seguintes, prosseguiria na vida acadêmica. Fez pós-doutorado pelo Rush Medical Center e pela Universidade Illinois de Chicago. 

    De volta ao Brasil, tornou-se professor de pós-graduação em biologia funcional e molecular do Instituto de Biologia da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e coordenador dos programas de pós-graduação lato sensu em fisioterapia da Unaerp (Universidade de Ribeirão Preto). Ele também coordena o curso de doutorado no Brasil do New York Institute of Technology. Ao longo da vida acadêmica, formou 17 novos mestres e doutores. 

    Seu João Galdino morreu em 2004, a tempo de ver o filho doutor. Gil Lúcio casou-se duas vezes. Tem três filhos: Gabriela, 13, Barbara, 7, e João Marcos, 6 meses. Foi reeleito, em 2008, presidente do Conselho de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do Estado de São Paulo. A fase dos trocados miúdos, ganhos como engraxate, ficou definitivamente para trás. Sonhos recorrentes, apenas um: ''Estou voando, como se fosse um pássaro.''



    De engraxate a doutor
    Como presidente do Conselho de Fisioterapia e Terapia Ocupacional do estado de São Paulo








    De engraxate a doutor




    Durante a infância humilde em São João Batista da Glória, Minas Gerais







    0 comentários: